O aroma das margaridas
— Hoje seria um dia como qualquer outro... Exceto pela morte de nossa querida Abigail...
Foram estas as palavras que ouvi quando me deparei ter perdido o maior amor de minha vida toda, Abigail estava morta e se não bastasse, eu estava vivo.
— Que agora nos deixa para fazer par com Deus, e neste momento de dor...
Eu não me lembro de agora o motivo de sua morte, eu me lembro de olhar no espelho, no retrovisor do carro e mais nada.
— Gostaria que o Sr. Dorival falasse um pouco sobre sua inestimável perda, que não deixa de ser nossa, mas que é com certeza mais sentida por ele agora viúvo.
Eu respirei fundo, ao passo de estar próximo daquela espécie de tribuna, meu discurso ecoou frio, cheio de frigidez e tristeza silenciosa, senti o tempo parar, eu já não estava mais ali, estava com Abigail que me levara de um lado ao outro do salão, foi como se voltássemos ao dia de nosso casamento onde dançamos pela primeira vez a valsa, mas se outrora seus passos me conduziam a sonhos duradouros e felizes, agora eles me traziam de volta a realidade perturbadora.
— Uma salva de palmas a palavras tão belas e emocionantes, que tenho certeza tocaram até o coração mais severo e duro.
Os sons daquelas palmas me fizeram voltar ao meu lugar, eu que já não mais sabia ter lugar nas coisas, eu me abrigara agora em meus próprios sombrios terrores.
— Meu querido Dorival, você não teve culpa alguma.
— Pois eu peço perdão mesmo assim...
— Ela lhe amava muito tenha certeza disto.
As coisas estavam ainda muito confusas. Sentia terríveis dores de cabeça e não me lembrava de como minha amada havia falecido, ao meu lado a mulher que eu mais amei nesta terra. O aroma das margaridas que cobriam seu corpo sem vida. Foi suficiente para me fazerem dormir.
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Lembro-me de vultos no hospital, aquele era o meu hospital...
— Rápido, enfermeira, ele será operado agora!
— Ela perdeu muito sangue doutor, não sei se temos condições...
— Então traga uma bolsa de sangue do tipo O, teremos que usa-la.
— Mas, doutor...
— Ande, devo a minha vida ao doutor Dorival, temos que salva-lo e salvar sua mulher, não podemos medir esforços, enfermeira.
— Está bem doutor...
Eu sempre quis ser pintor, admirava os retratistas que viviam nas ruas, fazendo suas verdadeiras obras de arte a custa de alguns trocados... — Doutor, Abigail está morta.
— Hora e data da morte?
— Duas e vinte do dia vinte de outubro de mil novecentos e noventa e nove. Com o passar do tempo àquela admiração se tornou a mais pura repulsa, eu sentia nojo daqueles boêmios, bêbados, que apenas faziam estragar seus dons a troco de centavos sujos...
— É testemunha de que fiz tudo para salva-la, enfermeira.
— Sou doutor. Infelizmente não foi suficiente.
— Como contar ao doutor Dorival?
— Eu sou apenas a enfermeira, doutor... Acho melhor um membro da família, como o senhor doutor.
— Não serei eu, enfermeira. Não tenho coragem de dizer ao meu pai o doutor Dorival que foi por minhas mãos que sua mulher encontrou a morte.
— Doutor a culpa não foi sua.
— Acho melhor procurar outro emprego, meu pai além de doutor é dono deste hospital, com toda certeza este hospital será fechado. Formei-me em medicina pela melhor faculdade do estado São Paulo, fui o primeiro de minha turma, tive muita sorte... Sorte por ter tido aula com os verdadeiros mestres e a de ter nascido em um berço de ouro. Não demorou muito e eu era dono de meu próprio hospital... Se não fosse este maldito hospital eu não a teria perdido... Eu estou começando a me lembrar...
— Vejamos o que temos aqui senhorita Abigail...
— Eu sinto dores na perna...
— Não se preocupe, os exames de raio-x não apontam fraturas no osso.
— É um alivio doutor. Abigail parecia ter certa predileção por acidentes, eu a conheci assim, tal logo eu saberia perde-la pelas mesmas razões as quais fizeram que nos encontrássemos... O tempo passou e nosso amor cresceu.
— Mais é claro que eu aceito me casar com você meu amor. Então nós nos casamos, foi realmente uma linda cerimonia. Eu me lembro de pega-la pelos braços e leva-la de cavalo até nosso destino
— Eu lhe amo de corpo e alma Abigail.
— E eu amo você Dorival mais que a mim mesma. Então, vivemos estas verdadeiras juras de amor por mais e por quinze anos o aroma das margaridas este presente em nossos travesseiros.
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Mas o aroma das margaridas estava próximo de se acabar... Estou me lembrando de agora algumas coisas.
— Dorival, por favor, você acabou de chegar do hospital está cansado, fiquei em casa.
— Eu preciso resolver alguns contratempos burocráticos no hospital, preciso voltar e coisa breve, meu amor.
— Se é assim então doutor diretor eu dirijo! Você não está em condições...
— Está certo, então vamos amor.
— Não se esqueceu de nada?
— Não, estou pronto.
— Dorival, hoje é nosso aniversário de casamento. Depois podemos passar naquele restaurante ao qual você adora ir...
— Eu te amo meu amor. Eu estava cansado vinha há dias sem dormir devido ao meu compromisso como diretor e como médico. Não precisava cobrir plantões, mas eu sempre os cumpria, nunca fui contra os votos feitos na faculdade e se o meu hospital precisava de mim. Eu estaria a serviço.
— Pai...
— Como está Abigail?
— Pai eu lamento...
— Não me chame de pai doutor.
— Ela está morta.
— Lamenta... Você nunca gostou dela. Sempre teve ciúmes. Sua mãe deve estar dando uma festa.
— Minha mãe está muito sentida, pai... Como pode dizer coisas assim... Minhas diferenças com Abigail nada interferiram meu trabalho como médico.
— Não me chame nunca mais de pai, meu filho morreu naquele pós-operatório junto com o amor de minha vida, seu incompetente, você e todos os envolvidos estão demitidos, cuidarei que você nunca mais trabalhe como médico. Agora saía daqui doutorzinho... Como um vinho que não recebe o devido armazenamento eu me tornei amargo, eu não consegui ser apenas um defunto, o amor de minha vida seria enterrada sozinha, fiquei aprisionado aquele amor... Mas, eu não deixei me recompor, logo eu dei por encerado minha carreira e meu hospital que era até então as maçãs do meu rosto... Eu mesmo demoli. Como quis incendiar todo aquele hospital, e me matar. Mas algo dentro de mim não permitiu. Talvez resquícios de uma vaidade já esquecida. Tornei-me um prisioneiro sem grades, soube pouco tempo depois que o filho de um grande médico aclamado pela sociedade, havia matado uma enfermeira e em seguida tirado à própria vida. Eu já havia matado meu filho, antes mesmo de enterra-lo, perde-lo uma segunda vez não me magoou. Eu resolvi fugir de mim mesmo, e eu andei sem olhar para trás até meus pés sangrarem, até que meus olhos cegaram.
— Atenção, todas as viaturas de policia. Foi achado o corpo já sem vida do doutor Dorival Costa Bueno, próximo aos contornos do trilho do trem perto ao jardim das margaridas. As duas e vinte do dia vinte um de outubro de dois mil. Abigail morreu devido a um acidente de carro, no dia nosso aniversário de casamento, ela dirigia o carro, pois eu estava cansado e precisava ir ao hospital. Acordei imediatamente após o impacto, estava todo machucado, mas ela sangrava muito, um corte no pescoço. Em desespero arranquei todo o estofado do banco para tentar estancar o sangue, mas não foi suficiente. Eu sabia que ela estava morta.
Fim